
Naqueles tempos longínquos, meados do século passado, Portugal era um país com mais de 50% de analfabetos, trabalhando 80% da sua população para a agricultura. Não tinham poder de reivindicação. Era o tempo da crise e da fome.
Em Vilarinho da Castanheira [concelho de Carrazeda de Ansiães] a sua população era de uma ruralidade de enxada às costas. Viviam ao ritmo do Sol. Cavavam, lidavam nas casas e nos campos; sempre no mesmo género de vida desagradável e dura, com vagas compensações de longe em longe, mas sempre curvados para a terra ou nas oficinas poeirentas.
Ali cresci, privilegiado em relação à grande maioria dos garotos da minha geração. Lidei de perto com gente muito pobre e necessitada.
Alguns vestiam uma "roupa nova" – calças de cotim e uma camisa de riscado, – no dia da Festa da Nossa Senhora da Assunção e só a despiam na festa do ano seguinte. Os que não andavam descalços, calçavam tamancos - “socos”. Assoavam-se com um lenço de... "cinco pontas".
Mães para lavarem a roupa dos filhos, despiam-nos, ficando estes nus, até poderem vestir a roupa novamente.
Passava-se muita fome. Muitas vezes, nem uma côdea de pão tinham para comer.
Famílias um pouco mais afortunadas, comiam a sua refeição principal junto à lareira, num prato enorme. Quem mais depressa se despachava melhor alimentado ficava.
Mães gritavam pelos numerosos filhos ao fim da tarde, antes do anoitecer..
Muitas casas tinham uma só divisão, paredes meias com os animais domésticos. Dormiam todos na mesma cama; uns para a cabeceira outros para os pés.
Gracejava-se então, que podia uma pessoa nascer, viver e morrer sem sair de Vilarinho.
Os numerosos filhos da "Polaca", por exemplo, andavam descalços, nus ou quase nus, em pleno Inverno na calçada, diante da porta do casebre. Eram exemplos de miséria ostensiva, tanto material como espiritual.
Em frente, morava o Regedor. A miséria em que vivia aquela família, parece que não lhe dizia respeito, nem o incomodava.
Naquele tempo, o Regedor tinha que zelar pela manutenção da ordem. Tinha poderes para entrar na casa de qualquer pessoa, do nascer ao por do sol e, se necessário, dar voz de prisão. Os detidos ficavam, provisoriamente trancados, numa loja térrea por baixo da sua casa. Logo que possível eram transferidos para a sede do concelho.
Mais tarde, na década de cinquenta, famílias numerosas de Vilarinho e de outras aldeias de Trás-os-Montes, cansadas da pobreza, foram expulsos pela miséria, das suas bermas natais, embarcando às centenas no cais de Alcântara, em Lisboa, em paquetes da CNN [Companhia Nacional de Navegação] e CCN [Companhia Colonial de Navegação] e... "navegaram" para Angola e outros, que conheci, para Moçambique, como "colonos" onde, no Vale do Limpopo, lhes eram distribuídas terras [machambas] para cultivo. De agricultores passaram a "machambeiros" e outros dedicaram-se ao comércio abrindo cantinas [a cantina do Botelho era uma referência], com o fim de garantirem a ocupação daquela região de Moçambique .
O Vale do Limpopo era uma autêntica zona rural de Portugal Continental em Moçambique.
A Vila do Guijá, a cerca de 200Km de Lourenço Marques, mais tarde, Vila Trigo de Morais [em homenagem ao Eng. Trigo de Morais - transmontano de Mirandela e "arquitecto" do Plano de Irrigação do Vale do Limpopo, um dos maiores sistemas de regadio da África Austral], sediava todo o apoio logístico e comercial, sendo elevada, em 1971, à categoria de cidade.
Após o 25 de Abril, com a descolonização, a grande maioria destas famílias, regressou, às "vagas", de barco ou de avião a Portugal, com uma mão cheia de nada, deixando tudo para trás ao abandono, procurando reinstalar-se nas suas terras de origem e reconstruir as suas vidas.
O Estado Moçambicano tomou posse dessas terras e redistribuiu-as pelos seus "camponeses".
Em 1976, Trigo de Morais passou a denominar-se Chokwé, continuando, apesar de tudo, a lembrar Portugal e a Alma Portuguesa...