O Dr. Belarmino considerava que a fragilidade da esposa não se coadunava com esforços necessários à lida da casa, pelo que quando a via envolvida nessa actividade, observava-lhe: «Que disparate! Quem te mandou fazer isso!? Tu sabes bem que não podes!? Considerava ainda que a esposa não tinha a obrigação de se levantar cedo. Não consentia que a incomodassem enquanto descansava ou dormia.
Em casa do Dr. Belarmino nunca faltava nada, mas não havia saldo para grandes extravagâncias.
Para os seus alfinetes, a D. Lurdes vendia particularmente: azeite, trigo, centeio, milho, etc.
Era o tempo em que todas as fotografias de família eram a preto e branco.
A porta da loja do cavalo, para além da sua função normal [acesso à loja do Galiza], tapada parcialmente com uma manta, servia de fundo para o retratista tirar retratos de família à la minuta.
A Favelina vivia connosco, era o braço direito da minha mãe, estava sempre à mão.
Era ainda parenta do avô Luís Cordeiro – a mãe dela chamava-lhe Tio Luís. Cuidava das coisas da casa, fazia pequenos trabalhos de modista e para além disso fazia as minhas roupas. Ajudou a criar-me. Gostava
muito de mim. Era uma pessoa de família.
Emigrou para o Brasil. O Dr. Belarmino, em reconhecimento dos serviços prestados, deu-lhe o dinheiro necessário para a passagem e deslocou-se ao Porto para tratar pessoalmente da papelada necessária.
O irmão tinha prometido arranjar-lhe lá trabalho como modista. Foi, no entanto, tratar dos filhos dele. Mais tarde casou com um sapateiro. Não foi muito feliz. Ainda escreveu algumas vezes à D. Lurdes, minha mãe. Faleceu ainda nova. Deixou boas recordações e muita saudade. Foi considerada insubstituível.
A Renaldina, uma rapariga vizinha da minha avó paterna, sucedeu à Favelina.
Entretanto aproximava-se o nascimento do meu irmão.
A meio da manhã dum frio dia 12 de Dezembro, a D. Lurdes começou a sentir as dores. Chegou o trabalho de parto activo. Mandou a Favelina comprar uma galinha e ir chamar o Dr. Belarmino à Casa do Povo.
O Dr. Belarmino, meu pai, veio logo e tratou dos preparativos para o parto que, por causa do frio de rachar, se realizou em cima dum colchão na cozinha ao calor da lareira. O parto dificultado pelo tardio rebentamento das águas correu bem, graças à aptidão do Dr. Belarmino, que se abstraiu da condição de pai assumindo com profissionalismo e competência a de médico.
Assim nasceu, na intimidade do lar, o meu irmão Luís Eduardo, trinta e sete meses e nove dias depois de mim.
Seguidamente, o meu irmão e a minha mãe – levada ao colo pelo meu pai – foram acomodados num quarto, onde ficaram mais confortáveis, não faltando a braseira para aquecimento do quarto.
Mal me apercebi do acontecimento, corri para casa dos avós paternos, dando a boa nova a quem encontrava no caminho. Ao chegar, avistei a minha avó Olívia na varanda da cozinha, onde nas horas vagas estava sentada a pontear a roupa, exclamei: «Avòzinha, já lá temos um menino de Paris!». A avó Olívia pôs o xaile nos ombros e lá foi comigo apressada ver o neto.
Levou uma manta vermelha feita em Urros [manta de lã de ovelha tecida em teares manuais, que nas duas fotos serve de pano de fundo tapando à porta da loja do cavalo], uns metros de flanela para o enxoval comprada no soto e um pouco de unto que, segundo uso na terra, fazia bem às parturientes.
A primeira coisa que a avó fez quando chegou foi mandar tirar a braseira do quarto, para o bebé e a mãe não correrem riscos.
O Dr. Belarmino, pôs o unto de parte e mandou dar à D. Lurdes uma canja dum frango gordo oferecido pela irmã da Favelina.
A avó, com sentido de humor, comentava que o Luizinho tinha vindo com os feirantes, visto dia 12 ser dia de feira em Vilarinho.
No dia do nascimento, o Heitor filho da vizinha Sra. Otília Lousão, dirigiu-se à mãe nestes termos: «Mãe! O Sr. Doutor já lá tem um raparigo, parece que não é de agora, ele berra tanto!»
A Sra. Otília foi ver o raparigo e levou uma pita.
Nos intervalos das substituições das criadas, a Sra. Otília disponibilizava as filhas Alzira e Celeste para ajudarem a D. Lurdes.
Foi um acontecimento logo divulgado por todo o Vilarinho. Naquele dia e seguintes houve um corrupio de visitas lá em casa, designadamente pessoas da aldeia, que levavam uma pita, como oferta, de acordo com a tradição.