Continuo a contar histórias da minha infância em Vilarinho da Castanheira. Recordo com nostalgia o tempo em que fiz a Instrução Primária.
As matrículas eram no início de Outubro. As aulas começavam após o "5 de Outubro", data comemorativa da implantação da República em Portugal.
Rapazes e raparigas tinham aulas em escolas separadas e distantes.
A professora "de sempre" das raparigas foi a D. Inês, que fazia do professorado um verdadeiro sacerdócio; tanto que quando se reformou, a pedido do bispo de Bragança , aceitou ser fundaddora de um convento de monjas [creio que em Sendim], onde ficou até ao fim dos seus dias.
Íamos todos a pé de sacola às costas para a escola. Alguns descalços, outros mais remediados, calçados com socos ou botas cardadas, manufacturados por medida pelos soqueiros e sapateiros da terra. Tirar as medidas para o calçado era de per si um ritual motivo de grande satisfação e expectativa.
O soqueiro Jingeira tinha um filho – o Clotário – com sete dedos no pé direito, um fenómeno local e não só.
A Escola ficava numa posição sobranceira ao adro da Igreja. Era muito antiga e exígua, com uma sala para as quatro classes [cerca de 50 alunos] dirigidas por um só professor.
Uma lareira escavada na parede, resguardada por uma porta em chapa de ferro, com lenha a arder no interior, aquecia a sala amenizando o frio cortante no Inverno. Chovia lá dentro. Alguidares e baldes eram o recurso para aparar a água da chuva.
À esquerda da lareira ficava secretária do[a] professor[a]. Do outro lado pontuavam o famigerado quadro preto, giz e apagador, complementados nas carteiras dos alunos pela lousa e o lápis de pedra, assim como o caderno para cópias e ditados.
Os alunos das 1ª e 2ª classes acomodavam-se em pesadas mesas com banco corrido para 4. Os das 3ª e 4ª classes em carteiras de 2 lugares. Cada aluno tinha na carteira à sua frente um tinteiro para molhar a pena na escrita de cópias e ditados.
Em frente ao alto na parede permaneciam: os retratos de Salazar e Carmona. com um Crucifixo de permeio.
O Estado Novo foi o regime autoritário que mais durou em Portugal. Salazar, seu arquitecto e protagonista, marcou o País de forma total. Nós, os garotos, parodiávamos com o nome dizendo que Sal (dá) azar.
Sanitários não existiam. Um aluno quando estava atrapalhado pedia do lugar ao professor: "sô pessô dá cença de ir lá fora?!" O professor perguntava: "fazer o quê?!" O aluno respondia: "fazer o que é preciso". Então o professor autorizava e "o que era preciso" era feito de imediato – alguns tinham as calças rachadas no "sim senhor" para facilitar a tarefa – na loja por baixo da escola, no quintal vizinho ou no "canêlho" mais próximo.
Era o tempo dos livros únicos. Livros escolares celebravam Deus, Pátria e Família, Salazar e a Mocidade Portuguesa nas suas capas e conteúdos. A orientação do ensino era pela moral cristã. A hierarquia começava em casa com o pai como "chefe de família". Nos manuais incluiam-se "frases obrigatórias" retiradas dos discursos de Salazar.
Aos Sábados, saíamos da escola em formação marchando e entoando cânticos patrióticos até ao adro da igreja, onde nos divertíamos com jogos tradicionais: o tiro liro, o eixo, a bola, etc.
Fora das aulas a brincadeira estendia-se aos jogos: do pino, da burra, da bilharda e à... pedrada que por vezes terminava com uma cabeça rachada e cada um a fugir para seu lado.
Foram três os professores: na primeira e terceira classes, o professor Miranda, na segunda, a professora Cândida Ochoa e na quarta, a professora Albertina. Todos transmitiram bons ensinamentos e deixaram-me boas recordações. Muitos dos conhecimentos que adquiri na instrução primária ainda hoje perduram.
O professor Miranda era o mais rigoroso. Era muito sério, não era para brincadeiras.
Eram tempos de palmatória, alguns alunos foram vítimas dos seus castigos corporais. Recordo o castigo aplicado ao João da Angélica, meu vizinho e amigo – uma série de palmatoadas no rabo, que ficou roxo e negro.
Quando cheguei a casa, contei logo à minha mãe que, na primeira oportunidade, lhe chamou a atenção: "Professor isso não se faz! Não pode castigar dessa maneira!"
Resposta do professor: "Reconheço que exagerei, mas enervei-me!"
O pobre do João é que "ficou com elas", "ninguém lhas tirou".
A professora Ochoa era mais ponderada, raramente castigava os alunos. Usava outros métodos. A tabuada, essa matemática para definir uma operação de multiplicação e tirar as provas dos nove e real, estava na ponta da língua.
Dizia, por exemplo, que tinha em casa um "bicho-de-sete-cabeças", destinado ao melhor aluno da escola naquele ano. Consegui sê-lo, só que nunca consegui ver tal bicho.
A professora Albertina dava-nos mais liberdade de estudar. Um mês antes do exame da quarta classe, logo ao nascer do sol, íamos buscar a chave da escola, que ela deixava debaixo da porta de casa, para recapitularmos os rios, as serras e os caminhos de ferro nos mapas de Portugal e das Colónias.
Incentivava as "sabatinas" entre os alunos da 4ª classe. Fazíamos perguntas uns aos outros sobre a matéria dada para ver quem se saía melhor.
Para o exame da 4ªclasse, deslocàmo-nos [de burro ou de cavalo] 14 Km até Carrazeda de Ansiães onde prestamos provas. Felizmente ficamos todos [dez alunos] aprovados, tendo no regresso e à chegada à aldeia manifestado verdadeira efusão de alegria e contentamento.
Numa altura em que o país oferecia aos alunos pouco mais que a instrução primária, apenas os filhos de meia dúzia de pessoas com algumas posses tinham possibilidade de continuar a estudar.
Alguns, como recurso, emigraram mais tarde para o Brasil, EUA, Canadá, Venezuela ou para outros países, com as suas famílias procurar melhores condições de vida.
Os restantes aprendiam uma "arte" [sapateiro, pedreiro, carpinteiro, alfaiate, etc.] ou mantinham-se na terra cultivando os campos.