
Os piões e a baraça

A caixa das ferramentas
Naquele tempo, os artífices eram designados pelo nome próprio agregado ao da profissão: "Aníbal Albardeiro", "Artur Alfaiate", "Fernando Latoeiro", "Alfredo Sapateiro", etc. , ou então, prevalecia uma característica do aspecto físico: "João Grande"[barbeiro], "Horácio Manco"[ferrador] e outras designações: "Pressas"[serrador], "Fala Barato"[carpinteiro] e por aí adiante...
Era ao "Aníbal Ferrador" que, eu e os outros garotos, recorríamos para substituir os ferrões de origem dos nossos piões, por outros maiores e mais afiados, a fim de competirmos no jogo do pião, dando maiores nicas e por conseguinte infligindo maiores estragos, aos dos nossos "adversários". [Alguns preveniam-se com outro pião só para levar nicas].
O bom do Senhor Aníbal, tinha uma pachorra infinda para aturar as nossas madurezas.
Quando tinha trabalho na forja e/ou na bigorna, dizia: " Deixem pra aí os piões e venham precurá-los daqui a um cibo.
E, daí a um cibo, lá estávamos novamente para levar os piões prontos artilhados com ferrões de competição, novezinhos em folha.
Quanto é Senhor Aníbal? - peguntávamos. Não é nada, pagam soitordia.
Era também o "Aníbal Ferrador” [pai do Albano, meu colega de classe, na Escola Primária] , sempre bonacheirão, atencioso e bem disposto, [não dispensava os seus copitos do tinto e de aguardente bagaceira destilada na alquitarra ], quem substituía, com muita competência, as ferraduras da Carriça - uma magnífica égua, de grande estimação, do meu pai.
Então, de costas viradas para o animal, levantava-lhe a pata e começava por desferrá-lo, arrancando os cravos da ferradura, a fim de a soltar do casco. Seguidamente, sempre com a caixa da ferramenta à mão, aparava a base do casco com um formão, procurando adaptar-lhe a ferradura nova em ferro, afeiçoada prèviamente na bigorna. Uma vez adaptada a ferradura, fixava-a com os cravos a martelo, que apareciam mais acima no casco, dobrando-os com o martelo e cortando-os com a turquês. Por fim, com a grosa, limava o rebordo do casco à face exterior da ferradura.
Ferrar um cavalo demorava cerca de uma hora. As más ferrações podem deixar cavalos coxos.
Os bois e alguma besta mais brava, tinham que ir ao tronco, situado no Eirô, ao fundo das traseiras do adro da Igreja, onde eram ferrados com a pata amarrada com uma soga.
O meu colega Albano, feita a 4ª classe, emigrou para o Brasil...Nunca mais os nossos caminhos se cruzaram na estrada desta vida.
... Cresci, estudei, cabulei e... um dia, fiz as malas, evadi-me das minhas raízes, embarquei no Cais de Alcântara, a bordo do paquete Moçambique, na rota de Vasco da Gama, até... Moçambique.
O "Anibal Ferrador" ficou na amnésia selectiva da minha memória.
Sete anos depois retornei, de licença graciosa, à Metrópole.
Num fim de tarde, depois da sesta [costume estival, naquele tempo] ia a pé com o meu pai para o campo, quando a mulher do "Aníbal Ferrador", muito aflita, se lhe dirige: "Senhor doutor o meu homem parece que tem a atriz [icterícia].
O médico foi ver o doente e constatou que padecia de cirrose, já num estádio tão adiantado que, no dia seguinte, o acompanhou de comboio até ao Porto, deixando-o internado e recomendado no Hospital de Santo António.
Passados dias, já noitinha, passou uma ambulância na rua e, pouco depois, o médico foi chamado para ir ver o "Aníbal Ferrador".
De regresso a casa, após um longo silêncio, o médico desabafou: "O Anibal Ferrador" não deve passar desta noite". E foi assim que, no dia seguinte, o bom do Senhor Aníbal, que evoco com muito carinho e emoção, entregou a alma ao Criador...