Porto de Sines

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sábado, 30 de abril de 2011

Dr. Belarmino [2]

O Dr. Belarmino considerava que a fragilidade da esposa não se coadunava com esforços necessários à lida da casa, pelo que quando a via envolvida nessa actividade, observava-lhe: «Que disparate! Quem te mandou fazer isso!? Tu sabes bem que não podes!? Considerava ainda que a esposa não tinha a obrigação de se levantar cedo. Não consentia que a incomodassem enquanto descansava ou dormia.

Em casa do Dr. Belarmino nunca faltava nada, mas não havia saldo para grandes extravagâncias.
Para os seus alfinetes, a D. Lurdes vendia particularmente: azeite, trigo, centeio, milho, etc.


Era o tempo em que todas as fotografias de família eram a preto e branco.


A porta da loja do cavalo, para além da sua função normal [acesso à loja do Galiza], tapada parcialmente com uma manta, servia de fundo para o retratista tirar retratos de família à la minuta.

A Favelina vivia connosco, era o braço direito da minha mãe, estava sempre à mão.


Era ainda parenta do avô Luís Cordeiro – a mãe dela chamava-lhe Tio Luís. Cuidava das coisas da casa, fazia pequenos trabalhos de modista e para além disso fazia as minhas roupas. Ajudou a criar-me. Gostava
muito de mim. Era uma pessoa de família.

Emigrou para o Brasil. O Dr. Belarmino, em reconhecimento dos serviços prestados, deu-lhe o dinheiro necessário para a passagem e deslocou-se ao Porto para tratar pessoalmente da papelada necessária.


O irmão tinha prometido arranjar-lhe lá trabalho como modista. Foi, no entanto, tratar dos filhos dele. Mais tarde casou com um sapateiro. Não foi muito feliz. Ainda escreveu algumas vezes à D. Lurdes, minha mãe. Faleceu ainda nova. Deixou boas recordações e muita saudade. Foi considerada insubstituível.


A Renaldina, uma rapariga vizinha da minha avó paterna, sucedeu à Favelina.


Entretanto aproximava-se o nascimento do meu irmão.


A meio da manhã dum frio dia 12 de Dezembro, a D. Lurdes começou a sentir as dores. Chegou o trabalho de parto activo. Mandou a Favelina comprar uma galinha e ir chamar o Dr. Belarmino à Casa do Povo.


O Dr. Belarmino, meu pai, veio logo e tratou dos preparativos para o parto que, por causa do frio de rachar, se realizou em cima dum colchão na cozinha ao calor da lareira. O parto  dificultado pelo tardio rebentamento das águas correu bem, graças à aptidão do Dr. Belarmino, que se abstraiu da condição de pai assumindo com profissionalismo e competência a de médico.


Assim nasceu, na intimidade do lar, o meu irmão Luís Eduardo, trinta e sete meses e nove dias depois de mim.


Seguidamente, o meu irmão e a minha mãe – levada ao colo pelo meu pai – foram acomodados num  quarto, onde ficaram mais confortáveis, não faltando a braseira para aquecimento do quarto.


Mal me apercebi do acontecimento, corri para casa dos avós paternos, dando a boa nova a quem encontrava no caminho. Ao chegar, avistei a minha avó Olívia na varanda da cozinha, onde nas horas vagas estava sentada a pontear a roupa,  exclamei: «Avòzinha, já lá temos um menino de Paris!». A avó Olívia pôs o xaile nos ombros e lá foi comigo apressada ver o neto.

Levou uma manta vermelha feita em Urros [manta de lã de ovelha tecida em teares manuais,  que nas duas fotos serve de pano de fundo tapando à porta da loja do cavalo], uns metros de flanela para o enxoval comprada no soto e um pouco de unto que, segundo uso na terra, fazia bem às parturientes.


A primeira coisa que a avó fez quando chegou foi mandar tirar a braseira do quarto, para o bebé e a mãe não correrem riscos.


O Dr. Belarmino, pôs o unto de parte e mandou dar à D. Lurdes uma canja dum frango gordo oferecido pela irmã da Favelina.


A avó, com sentido de humor, comentava que o Luizinho tinha vindo com os feirantes, visto dia 12 ser dia de feira em Vilarinho.


No dia do nascimento, o Heitor filho da vizinha Sra. Otília Lousão, dirigiu-se à mãe nestes termos: «Mãe! O Sr. Doutor já lá tem um raparigo, parece que não é de agora, ele berra tanto!»


A Sra. Otília foi ver o raparigo e levou uma pita.
Nos intervalos das substituições das criadas, a Sra. Otília disponibilizava as filhas Alzira e Celeste para ajudarem a D. Lurdes.

Foi um acontecimento logo divulgado por todo o Vilarinho. Naquele dia e seguintes houve um corrupio de visitas lá em casa, designadamente  pessoas da aldeia, que levavam uma pita, como oferta, de acordo com a tradição.


14 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...

No outro post (Dr. Belarmino 1), enquanto o lia ia recordando Namora.

Agora, lembrei-me de Aquilino Ribeiro em "Aldeia".

Está a ser tão bom para mim ler estas passagens!

Obrigada por partilhar pedaços grandes da sua vida.

Beijo

Maria Rodrigues disse...

Amigo adorei ler a sua história. Quanta inocência "... já temos um menino de Paris", outros tempos meu amigo.
Tenha um maravilhoso fim de semana pleno de alegria e paz.
"Não acrescente dias a sua vida, mas vida aos seus dias." (Harry Benjamin)
Beijinhos
Maria

Unknown disse...

Bom dia amigo
Gostei muito desta segunda parte da vida do Dr Belarmino.
Retrato completo de muitos médicos e enfermeiros das aldeias portuguesas.
História rica pela linguagem que se foi perdendo e que hoje muitos nem sabem o significado:
- pita = galinha nova ou franga.
- menino de paris e outras expressões que encantam pela naturalidade da discrição.
Agradeço a visita ao liacoelho e deixo-te um abraço neste domingo chuvoso em que celebramos o dia da mãe.

Graça Pereira disse...

Vim com interesse ler a história (continuação) do Dr. Belarmino e adorei. Estas histórias de vida, com aspectos complicados e doridos mas tambem com tanta poesia e encanto, maravilham-me! Isto sim...eram vidas em família, mais dedicados uns aos outros e em que havia um ritual para se cumprir.
Parabens Jorge pela narrativa e espero pelo Dr Belarmino(3)!
beijo amigo
Graça

Guma disse...

Olá amigo e estimado Jorge.

Um pouco arredado do computador, fico feliz por aqui chegar e ter a oportunidade de ler mais um pedaço de si e de uma família, que me vejo a admirar.
Tempos em que as gerações partilhavam costumes e o testemunho era passado com naturalidade.
Nada jamais será como foi, resta-nos, quem pela narrativa e tão bem nos relembra, como família, costumes e uma cultura, não se devem perder de vista. Pois quem não tem noção de onde vem, o que cá anda a fazer, também não sabe para onde vai.

Grato por este belo momento, deixo meu kandando amigo.
Inté...

Janita disse...

Jorge Amigo.
Muito me alegrou ler mais esta bela narrativa de um bocado da sua história e da sua família.

Que bom o Jorge partilhar connosco essas memórias. É uma forma de voltar atrás no tempo e às suas origens.

Engraçada essa expressão de raparigo. Espero que continue, Jorge, gostava de saber da sua vinda para o Porto.
Preciosas as fotos.

Beijinho amigo.

Janita

Laura disse...

Olá Jorgeeeeeeeeeeeeee..muito ri e li e reli, mas aquela do raparigo ahhh e de vir de paris foi o que eu disse à minha s'tora nos meus 8 anos quando ela me perguntou de onde tinha vindo o meu irmão..e eu toda ufana; veio de Paris senhora Professora...minha nossa, santa inocência a daqueles tempos e que rico pai tiveste, que mãe e gente linda entre vós, é isso que dá valor à vida, poder contar com gente linda por perto, daquela gente às quais temos preso o coração.

Um beijinho da laura

Jose Ramon Santana Vazquez disse...

...traigo
sangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...


desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ


COMPARTIENDO ILUSION
JORGE

CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...




ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE MEMORIAS DE AFRICA , CHAPLIN MONOCULO NOMBRE DE LA ROSA, ALBATROS GLADIATOR, ACEBO CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER ,CHOCOLATE Y CREPUSCULO 1 Y2.

José
RamóN

franciete disse...

Amigo Jorge, há pessoas na nossa vida que nunca deveriam ter passado, mas em contrapartida há outras que jamais deveriam de partir, são estas recordações que povoam ao longo do tempo que por cá andamos as nossa memórias.
Beijinhos de luz e muita paz

Anónimo disse...

Olá, Jorge!

Obrigado pela visita e comentário; e bem vindo!
Também eu tenho andado afastado destas lides por causa duma tendinite, bastaste assanhada, que não me quer largar...
Lindamente contada essa visita ao (seu) passado: a lembrança da família, da vida de médico nesses tempos, e de tudo o resto que cheira a campo, cujos aromas aqui trazidos eu facilmente consigo respirar.
A "parteira que ia a casa, mais a curandeira, mais a bruxa que fazia benzeduras e tirava os maus olhados... todas estas figuras me vêm à memória lendo o seu texto, tão minucioso e cuidado.
Gostei muito de ler; também eu consegui voltar atrás no tempo...

Um abraço amigo, e obrigado pelos votos de melhoras.


Vitor

Lídia Borges disse...

No passado as "coisas" eram tão "vividas". Vivia-se e sentia-se de outro modo. Tudo parecia mágico e havia mesmo milagres. Guardo a proximidade e a solidariedade imensa entre as pessoas. Agora o mundo de tão "racional" tornou-se quase desumano.

Gostei muito do que li!...

L.B.

Graça Pereira disse...

Jorge, meu Amigo
Então o Dr Belarmino três? Estou curiosa e tu aguças a nossa curiosidade!!
Beijo e uma boa semana.
Graça

Jorge disse...

Pois é, meus amigos/as, é uma verdadeira saga de humildade, sacrifício, autenticidade e grandeza a vida do Dr. Belarmino, relativamente a um passado que tenho ainda bem presente, embora haja certas coisas que não estão tão nítidas até escrever sobre elas.
Reconhecidamente agradeço a gentileza da vossa atenção e lhanesa das vossas opiniões. Procurarei ser mais sintéctico e objectivo, embora esta narrativa tenha um caracter mais descritivo que me dá prazer partilhar convosco.
Um abraço e uma boa semana para todos.

Regina Rozenbaum disse...

Ei Jorge, amado!
Vim ler a parte II e III tb, é claro!
Outros tempos mesmo. Costumes, valores completamente diferentes dos atuais.
Vou lá prá cima ler...
Beijuuss n.a. e inté