Porto de Sines

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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Dr. Belarmino [3]

O Luis Eduardo [Zito], até à idade de um ano, foi sempre muito fraquinho e doentinho. Tinha muitas maleitas, pôs-se um chicharro, era alimentado com leite de cabra.
Uma mulherzinha foi vê-lo e comentou: «Eu também tive assim um filho, coitadinho.» «Que lhe aconteceu?», perguntou D. Lurdes. «Morreu», foi a resposta.

A criada Teresa, passava noites em claro a cantar com ele ao colo. A canção favorita era: «Agora é que eu me maneio nos braços do meu amor!» Mal se calava, ele desatava logo a berrar. Não deixava ninguém pregar olho. Tenho uma ideia do vai e vem da Teresa com ele ao colo na sala. O Zito custou muito a melhorar.
O Dr. Belarmino, entre outras medidas, comprou uma vaca leiteira, que ficou nas Olgas onde tinha pasto abundante. O leite da vaca contribuiu para ele arribar e pôr-se um pimpolho muito lindo. Muitas das vezes era o Dr. Belarmino quem trazia o leite das Olgas.
Recordo-me que a vaca teve ainda um bezerrinho, que aturou as minhas brincadeiras. Cheguei a montá-lo e a malhar dele para baixo, no lameiro das Olgas.

A certa altura, o Dr. Belarmino mudou-se com a família  para uma moradia situada a pequena distância da capela de S. Sebastião, no extremo sudeste da aldeia.


 Casa antiga, com grades três das janelas dos quatro quartos, três salas e uma cozinha  com piso em lajes de granito, com saídas para a cortinha  e  para o quinteiro.


Tinha  no interior uma mina de água, com uma porta em ferro, anexa á cozinha [onde no Verão o Dr. Belarmino punha água e a pinga do tinto a refrigerar - era uma autêntica geleira], por baixo uma adega e duas lojas.
Atrás um quinteiro, com um palheiro e loja para o cavalo ao fundo.
À frente uma enorme cortinha com três meroças e outra mina de água a meio na segunda meroça. Havia duas árvores de fruto de grande porte, uma cerejeira e uma nogueira; abrunheiros, ameixieiras, macieiras, marmeleiros, e videiras ao longo da parte interior dos muros de suporte das meroças, espaços mais que suficientes para eu o meu mano espairecermos com os amigos; armando esparrelas aos pássaros, subindo às árvores à procura de ninhos, ou ainda colhendo frutos, no tempo deles. As cerejas  e os pintassilgos doirados eram  preferidos.

Ir à missa aos domingos e visitar-nos era para o avô Luís um acto solene. Vestia a preceito o seu fato e capa preta com abas de cetim, chapéu e duas bengalas que os seus já noventa  anos não dispensavam, conforme a foto documenta. Eu, compenetrado e perfilado ao lado da minha tia e madrinha  [hoje com 99 aninhos], o meu mano recostado de bibe ao lado de um amigo.

O dono desta moradia, um emigrante de apelido Santos, residia no Brasil. Cedeu esta casa gratuitamente ao Dr. Belarmino. Era a única moradia em Vilarinho com sanita em loiça. Não havia água canalizada.

O Cano era um fontanário, com quatro torneiras, onde a população, aguardando vez, se abastecia de água, que as mulheres levavam à cabeça, com uma rodilha de protecção – a sogra –, em cântaros ou canecos para casa.
As bestas também transportavam em engarelas quatro cântaros de água.
O tanque das burras [onde estas bebiam], antecedia esse fontanário, ficando separado por um muro, com escadas de acesso nos extremos.

Conta-se que quando o Santos veio a Portugal com a esposa brasileira, esta, como não havia retrete, tinha que fazer as necessidades no quinteiro, onde o porco, à sua volta, não a largava. Aflita gritava alto pelo marido: «Santos…! Santos…! Reco papa a minha bunda…!». Então o Santos, para sua tranquilidade e comodidade da esposa, mandou fazer uma casa de banho com sanita ligada a uma fossa construída no quinteiro, – um luxo na altura.

O Dr. Belarmino mandou substituir os soalhos das salas de entrada e de jantar. As madeiras provieram dos pinheiros das Olgas [sua propriedade raínha], serradas pelo Pressas-serrador. O carpinteiro encarregado de fazer o trabalho foi o António Vieira mais conhecido pelo Fala-barato. O homem gostava mesmo de falar, era boa pessoa e simpático. O filho – Belarmino também de nome – foi meu colega na escola primária. Tinha também uma filha chamada Mabélia. Não primavam pela inteligência, para desgosto do pai..

Ao fundo da cortinha existe ainda um muro desproporcionadamente alto, mandado construir pelo primitivo dono, no princípio do século XX, para impedir a vista de cenas escandalosas, visíveis do exterior, protagonizadas pelas banidas – refugiadas oriundas da Europa Central. O muro ficou conhecido pelo  muro das banidas.

Um dos quartos foi adaptado para o consultório do Dr. Belarmino. Finalmente, o Dr. Belarmino tinha o seu consultório. Ficava contíguo ao quarto do casal. Garantindo assim assistência médica praticamente permanente. Durante a noite bastava baterem no vidro da janela do quarto [a porta de acesso à cortinha ficava sempre só no trinco] alertarem o médico e serem de seguida atendidos.

Os doentes iam ao médico quando já não suportavam o sofrimento, embrulhados na sua dor e na sua amargura.

Naquele tempo, era difícil o exercício da medicina. Faltava de tudo um pouco: medicamentos, anestésicos, desinfectantes, etc. A situação em Vilarinho, face ao seu afastamento na terra fria transmontana, era duma carência extrema.

O Dr. Belarmino enfrentava com meios improvisados as situações de emergência mais dramáticas. O fim, era deixar o doente o melhor possível. 

As constipações e gripes eram tratadas com «papadas de linhaça e pó de mostarda» em água quente. As papas eram despejadas em cima dum pedaço de lençol, com gaze por cima. A papada dava a volta ao peito e às costas, aconchegada por qualquer outra coisa.

Houve que extrair unhas encravadas e infectadas com deficiente anestesia. Lancetar, com o bisturi, abcessos deixando uma mecha de drenagem. Queimar carbúnculos com  chave de fendas aquecida ao rubro na máquina a petróleo. [Só mais tarde é que pôde ser utilizado o termocautério]. Tratar fracturas a olho clínico, com talas e ligaduras. Mirandela, a cerca de 30 km, era a localidade mais próxima onde era possível tirar radiografias.

Era o tempo em que se pincelavam as amígdalas com iodo e da pomada de colargol, manipulada em Carrazeda pelo farmacêutico Raínha.

Medicamentos injectáveis eram aplicados com seringas de vidro e agulhas reutilizáveis, esterelizadas em
àgua fervente e transportadas em caixas metálicas. A maioria eram aplicadas nas nádegas.

Nas zonas rurais existia uma maior proximidade entre o médico e o doente. Essas relações tinham aspectos positivos e negativos. Iam muitas vezes para além do aspecto clínico. O médico tinha que ser duro para as pessoas que abusavam da sua paciência.

São muitas as recordações de casos insólitos que ocorreram no consultório do Dr. Belarmino, recordo alguns:

Uma mulher do Pinhal do Douro andava metida com um homem casado. A mulher sabia, e, quando encontrou com a rival, dirigiu-se como que para a beijar e de papo feito mordeu-a num beiço. A outra não esteve com meias medidas, pagou-se na mesma moeda, mordendo-a também num beiço, ficando as duas a sangrar. Concluindo, morderam-se nos beiços.
A casada, com o marido, pôs-se a caminho e foi a Vilarinho tratar-se no consultório do Dr. Belarmino. Passados uns instantes apareceu a outra acompanhada de um familiar, cruzando-se as duas no consultório. Esta tragicomédia fez rir a bom rir o Dr. Belarmino.

Um homem, na taberna do Daniel Duque, apostou em como conseguia comer um trigo inteiro duma só vez. Resultado, forçou tanto os queixos, que desconjuntou o maxilar inferior. Aflito correu para casa do Dr.Belarmino. Este meteu-lhe dois dedos na boca e, em dois tempos, articulou o maxilar para alívio do alarve que lhe ficou muito agradecido. Viu-se livre daquela e, com certeza, ficou sem vontade de se meter noutra.

Uma mulherzinha levantou a filha por um braço e sem querer desconjuntou-lho. Correu também aflita ao médico. Este lá conseguiu repor as articulaçõezitas da criança no seu devido lugar. A mulherzinha aliviada agradeceu.

As feiras eram muito concorridas e as tabernas também. Havia muitas rixas. Era raro o dia de feira em que não apareciam, no consultório do Dr. Belarmino, metoitas rachadas, vulgo esmicholados – por apedrejamento ou à paulada.
Os golpes eram desinfectados, tratados e suturados com agrafos – ganchos que uniam os lábios das feridas.
A maioria dos pacientes, passada uma semana, já estava em condições de se tirarem os agrafos e prontos para outra, não obstante das recomendações do Dr. Belarmino

Lembro-me ainda da operação  a um potro, que saltou por cima de uma cancela de madeira, que dava acesso a um prédio situado nas traseiras da Capela de São Sebastião, rasgando o soventre. O potro foi transportado para o palheiro que ficava no  quinteiro. Aí o Dr. Belarmino fez de cirurgião/veterinário, com numerosa audiência um pouco à distância, operou-o e coseu-o, ficando o potro como novo.





13 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...

Como gosto disto!

Como estas recordações me fazem sorrir e lembrar de outras.

Jorge, obrigada!

Beijo

Regina Rozenbaum disse...

Hoje também falta de tudo um pouco...Mas por outros motivos. A saúde pública por aqui é VER-GO-NHO-SA! Alguns termos, palavras, tive que recorrer ao dicionário...para compreender o sentido rsrs
Antes que me esqueça: OBRIAGADA pelas palavras (a mim dirigidas) deixadas na Serra da Leba.
Beijuuss n.a.

Guma disse...

Olá amigo e estimado Jorge,

Costuma dizer-se, "eu sou do tempo em que...".
Realmente não sou desse tempo, mas também não tão afastado assim. E isso provoca-me uma saudade de outros tempos, mesmo não sendo de tempos meus, mas de onde vem o meu berço.
Encanta-me a oportunidade que tenho de o ler. Memórias que não perco, porque nelas me encontro. Muito bom saber de onde vimos, como estamos, e para onde iremos.

Kandando enorme a chegar aí.

Graça Pereira disse...

Querido Amigo

Gosto do modo como relatas estas histórias de um tempo que eu não vivi. Parece-me que leio Eça ou Aquilino Ribeiro... ou então memórias dos meus pais, tambem eles transmontanos, contando inumeras peripécias daquele tempo.
Eles foram muito novos para Moçambique , tendo-se casado em LMarques mas, nunca esqueceram as suas origens e desde sempre nos relataram episódios engraçadissimos.
Mas o Dr. Belarmino foi o herói de uma época atribulada onde tudo faltava...menos a sua grande bondade!
Obrigada por estes relatos, Jorge.
Beijo amigo
Graça

Anónimo disse...

Olá, Jorge!

É largo e fundo o seu baú de recordações, que aqui que nos relata com visível prazer, como se tudo vivesse de novo. Para mim, o que aqui leio é um recuar no tempo, mas não tanto assim. Ao que aqui conta facilmente lhe consigo juntar imagens, e até sabores, e é um prazer lê-lo.
Parabéns!

Um abraço amigo.
Vitor

Janita disse...

Jorge Amigo.
É uma delícia ler estas suas belas memórias descritas com tal encanto que me enchem de ternura. Como diz o amigo Vitor, o seu baú é, de facto, largo e fundo.
A dedicação do Dr. Belarmino está sempre patente, tanto a suturar as cacholas rachadas nas rixas das feiras, como a operar potros.
Desta vez o Jorge recheou esta narrativa com termos muito engraçados. Alguns para mim desconhecidos. Outros chego lá por associação de ideias.
Fartei-me rir com o ataque das duas rivais. Vejam só aonde elas se haviam de morder...beijos durante uns tempos, não ia haver nada para as duas.
Espero que o Zito se venha a tornar num menino robusto, com o seguimento da narrativa.
Na foto o Jorge é o menino da esquerda, muito aprumadinho e compenetrado, verdade?
Memórias preciosas que nos fazem viver, ao revivê-las.

Jorge, aquela quadra que me deixou, eu também me lembro do poema quase todo e é muito bonito. Com todos os males de termos crescido numa ditadura, antes eram-nos passados certos valores nos bancos da escola, através de belos poemas e histórias.
Já que estou numa de recordar vou aqui deixar-lhe a primeira quadra a ver se o Jorge também se lembra.

"Os passarinhos tão engraçados
Fazem os ninhos com mil cuidados
São para os filhinhos que vão nascer
Que os passarinhos os vão fazer."

Ah, Jorge...que saudades desses tempos!

Abraço e beijo muito grato e amigo.

Janita

franciete disse...

Amigo adorei ler toda esta história tão real, e, como eu tenho tão grandes lembranças destas coisas, pois na minha infância também as tenho. Algumas já divulgadas e outras ainda sem coragem para tal, essa do termocautério que eu também o conheço a que dávamos o nome de gato assanhado, pois além de outras serventias, dava também para dar as pontas de fogo nas gengivas.
Ainda há vinte e tantos anos trabalhei com ele, os versos escolares que tanto se declamava na escola são lembranças que fazem a nossa história e formaram as belas árvores em que nos tornamos.
Muito tinha aqui para relatar mas por hoje já chega, é muito bom quando encontramos amigos que tiveram as mesmas travessias que nós, beijinhos de luz e muita paz para seus dias meu amigo.

Jorge disse...

Amiga Acácia Rubra,
É sempre bom valorizarmos os gostos dos nossos amigos. Obrigado.
Bj

Luminosa Amiga Rê,
O nosso Serviço Nacional de Saúde [SNS] é muito razoável, tem-se modernizado e evoluído. Pode ombrear, sem desprimor, com os melhores.
As expressões que a levaram ao dicionário ficaram no meu léxico transmontano para sempre.
Comentar na Serra da Leba e falar de si é duplo prazer.
Abrs

Kimbanda Atento Amigo,
É sempre com inusitado prazer que edito e leio as suas bem elaboradas e encorajadoras opiniões.Kanimambo!
Um forte Kandando cá do meu kimbo.

Jorge disse...

Graça Pesso[l] Amiga,
Mais uma afinidade - as nossas raízes transmontanas.
O Dr. Belarmino, não era um santo, era honesto e amigo da família, tendo-se sacrificado sempre pelo seu bem estar, como espero ter oportunidade de manifestar.
Kanimambo pela tua companhia assídua no Azimute, que aprecio "maningue".
Bj

Jorge disse...

Corrijo: Pessoa[l] Amiga

Fê blue bird disse...

Estou simplesmente fascinada com esta maravilhosa descrição.
Por curiosidade lhe digo que vivi em Sines os melhores 15 anos da minha vida.
Vou segui-lo com atenção ;)

Bjos

Jorge disse...

Viva Vitor,
Grato pela sua sincera opinião.
O baú de de recordações, realmente, parece não tem fundo. Isto é só uma pequena amostra. Vamos ver o que se proporcionará editar.
Um abraço.
J

Amiga surpreendente Janita,
Grato pela sua detalhada e bem elaborada opinião.
O baú vai ficar fechado por um tempinho, para não maçar os/as amigos/as. Brevemente reabri-lo-ei.
Bjs com toda a amizade.
J

Magia da Inês disse...

Amigo,
Estou tendo problemas para postar comentários na maior parte dos blogs dos meus amigos.

Bom fim de semana!
Beijinhos.

°º♫
°º✿Brasil
º° ✿♥ ♫° ·.